Um novo estudo mostra como a Zona Franca de Manaus pode colher vantagens comparativas de sua localização no meio da maior floresta tropical do mundo
Quando a Zona Franca de Manaus (ZFM) foi criada, em 1957, ela tinha um objetivo bem definido: ser um polo exportador. A política implementada na ocasião permitia que suas empresas beneficiassem as matérias-primas que passassem pelo porto de Manaus e vendessem o produto, com isenção fiscal, ao mercado externo. O cenário mudou com o tempo. Durante a ditadura militar, a ZFM passou a fazer parte da estratégia adotada pelo governo para ocupar a Amazônia.
Hoje, o Polo Industrial de Manaus (PIM) abriga mais de 500 empresas e emprega mais de 80 mil pessoas. Seus defensores afirmam que a Zona Franca é essencial para o desenvolvimento da região. Para fazer juz a essa promessa (garantir desenvolvimento econômico em harmonia com o meio ambiente) a ZFM vai ter de passar por mais uma reinvenção.
É o que sugere o estudo “Aprimorando a Zona Franca de Manaus: lições da experiência internacional”, recém-publicado pela economista Amanda Schutze, pesquisadora da Climate Policy Initiative e professora da PUC-Rio. O artigo põe a ZFM sob uma lupa. Descobre que, da maneira como funciona hoje, ela guarda pouca — ou nenhuma — semelhança com uma zona franca típica. E que, se quiser avançar, vai ter de fazer as pazes com o bioma amazônico. “Hoje, a Zona Franca e a floresta não se conversam”, diz a economista.
O trabalho faz parte do projeto Amazônia 2030, um gigantesco esforço de pesquisa, liderado por organizações brasileiras, que pretende traçar um mapa para desenvolver a Amazônia nos próximos dez anos, de maneira sustentável, mantendo a floresta em pé.
Frequentemente, falar sobre a ZFM equivale a mexer num vespeiro. “A conversa se divide entre pessoas que defendem que a Zona Franca exista, e pessoas que defendem que ela deixe de existir”, afirma Amanda. Entre um pólo e outro, a pesquisadora decidiu seguir pelo caminho do meio. Foi buscar, na experiência internacional, iniciativas que ajudassem a apontar novos caminhos para o caso brasileiro.
Hoje, as empresas que atuam na ZFM contam com isenções fiscais para funcionar. No total, foram R$24 bilhões em incentivos fiscais em 2019. Para contar com esses benefícios, as companhias precisam seguir as regras descritas no Processo Produtivo Básico (PPB), que define as contrapartidas às isenções. Os empregos gerados são, no geral, de baixa remuneração: a maioria dos trabalhadores do Polo Industrial de Manaus (PIM) ganha até dois salários mínimos.
No PIM são produzidos uma infinidade de artigos. De aparelhos de ar-condicionado a bicicletas e refrigerantes gaseificados. Nenhum deles tem qualquer relação com a floresta: não usam matérias-primas locais, por exemplo. Isso significa que a localização da ZFM não lhe confere vantagens comparativas. “É como se ela pudesse estar em qualquer outro lugar”, diz Amanda.
O grosso dessa produção fica no Brasil — 98% do faturamento do PIM decorre da venda para o mercado interno. É o oposto do que se espera de uma zona franca típica. Nas zonas francas espalhadas pelo mundo, as empresas recebem benefícios de modo a se tornar competitivas no mercado internacional. Numa zona franca tradicional, uma montadora não paga impostos pelos insumos que importa, por exemplo. E recebe isenções somente se exportar o produto pronto. Em Manaus, o benefício continua valendo mesmo quando a produção é vendida no Brasil.
Observando a experiência internacional, Amanda percebeu que o caso brasileiro se encaixa muito melhor numa outra classificação: a de “zona empresarial”. Mais comuns em países ricos, as zonas empresariais são criadas quando os governos notam a necessidade de desenvolver uma determinada região cuja economia ficou para trás. Nelas, as empresas recebem incentivos para funcionar, mas são cobradas a dar contrapartidas: gerar empregos bem remunerados, por exemplo.
Parece ser essa a vocação da atual zona franca. Passar a encarar a experiência amazônica como uma “zona empresarial” abre espaço para mudanças no seu funcionamento: “ se há o interesse de que as empresas ali instaladas desenvolvam uma relação sustentável e positivamente impactante com a floresta, deve-se criar incentivos que estejam conectados a fins de questões ambientais”, afirma o estudo. Se o objetivo for, declaradamente, desenvolver a região, podem ser feitas alterações nas contrapartidas previstas no PPB — para incorporar requisitos relacionados a sustentabilidade ambiental e eficiência energética, por exemplo.
Mais que isso, diz Amanda, podem ser estimulados negócios que mantenham uma relação próxima com a floresta, e que se beneficiem da proximidade com o bioma amazônico. Que tenham, enfim, as tais vantagens comparativas que hoje não existem. “Empresas farmacêuticas ou de alimentos, por exemplo”, arrisca a economista. “Algo que chamamos de bioeconomia industrial”.
É um caminho possível. Trilhá-lo exige, ainda, que as discussões sobre o futuro da Zona Franca sejam travadas com ânimos menos acirrados. “No Brasil, existe uma falsa impressão de que avaliar uma política pública significa propor seu fim”, diz Amanda. “Mas não é assim que funciona. As avaliações são importantes para que as políticas melhorem, tragam benefícios”.
A lição é especialmente valiosa para o Brasil de 2021. Em janeiro, o governo federal manifestou o desejo de criar uma nova zona franca encravada na mata. Dessa vez, no Pará. A análise de Amanda demonstra que qualquer nova experiência, para ser bem-sucedida, vai ter de ser capaz de conversar com a floresta — e ajudar a preservá-la.
Foto: Porto de Manaus: para avançar, região precisa “conversar” com a Amazônia, diz estudo (AGECOM-AM/Divulgação)