Como seu ar-condicionado pode esfriar o planeta

A adoção de tecnologia já existente para substituir os gases dos climatizadores e refrigeradores pode sozinha evitar 0,5 grau de aquecimento do planeta

As mudanças climáticas já estão acontecendo. Os eventos climáticos extremos já começaram. Entre eles, a estiagem extraordinária que esvaziou os reservatórios das hidrelétricas brasileiras e nos joga numa crise energética. Há outros fenômenos como tempestades fora do normal, furacões mais intensos e até – de forma aparentemente contraditória – eventos isolados de nevascas mais pesadas no norte da América do Norte.

É fundamental conter o agravamento das mudanças no clima. Para isso, precisamos urgentemente parar de transformar a atmosfera da Terra. O clima está mudando porque estamos jogando na atmosfera uma combinação de gases que aumenta a capacidade da atmosfera reter o calor do sol, acentuando uma característica natural dela, o efeito estufa. Se o aquecimento global continuar neste ritmo, os cientistas alertam para um agravamento dos problemas a ponto de tornar nossa vida bem desagradável e comprometer a própria civilização.

Deter as mudanças climáticas para evitar as consequências catastróficas é um consenso mundial. O principal esforço em todo o mundo para segurar a atmosfera da Terra é conter as emissões do principal gás agravador de efeito-estufa: o gás carbônico. Ele é emitido principalmente pela queima de combustíveis fósseis (gasolina, gás natural, carvão etc.) e pelo desmatamento. E é aí que começam as dificuldades.

Zerar o desmatamento exige investimentos para valorizar a floresta em pé e combater a atividade criminosa por trás da devastação. Reduzir o uso de combustíveis fósseis é ainda mais complicado: depende de uma transição para outras formas de gerar energia, transportar pessoas e produtos etc. Essas mudanças estão em curso, mas levam tempo. Tempo demais. Mais tempo do que temos para evitar que a temperatura aumente acima de 2 graus, o limiar perigoso estabelecido pelos cientistas. Um dos principais problemas é que o gás carbônico permanece na atmosfera por séculos, aumentando o efeito estufa e mudando o clima. Isso significa que, mesmo que pararmos de emitir hoje, as consequências ainda virão por décadas e décadas.

É aí que entra uma solução. Existe um atalho para deter rapidamente o agravamento do efeito estufa. Ele envolve cortar as emissões de um outro tipo de gás: os hidrofluorcarbonetos (HFCs). Eles são usados em sistemas de refrigeração de ar condicionado e em alguns tipos de refrigeradores. Quando vazam, vão para a atmosfera e têm um alto poder de aquecer o planeta.

Os gases HFCs têm capacidade para reter calor da ordem de duas mil vezes a do gás carbônico. Por outro lado, têm uma vantagem. Eles são chamados gases de meia vida curta. Uma vez na atmosfera, se decompõe naturalmente em 10 a 20 anos. Isso significa que, enquanto eventuais reduções de emissões de CO2 feitas agora levarão centenas de anos para fazer efeito, os gases do ar-condicionado e geladeiras estarão decompostos em pouco mais de uma década, deixando de causar o problema.

A segunda grande vantagem de reduzir os HFCs é a viabilidade técnica e econômica. Trocar esses gases por outros similares sem impacto no clima não exige nenhuma mudança em nosso estilo de vida ou de produção. Basta uma alteração nos equipamentos de refrigeração domésticos e industriais. A tecnologia é totalmente conhecida e de uso corrente no mundo todo. Só é preciso incentivos para que a indústria faça isso.

Por isso, em outubro de 2016, os Estados membros do Protocolo de Montreal (aquele que salvou a camada de ozônio, trocando gases de aerossóis e refrigeração no passado) decidiram, em reunião realizada em Kigali, capital da Ruanda, pela aprovação de uma emenda ao Protocolo para reduzir o consumo dos HFCs. Se as metas da Emenda de Kigali forem atingidas, evitaria-se um aumento de até 0,5 grau na temperatura da Terra até 2100. Isso sozinho já atingiria um quarto do objetivo mundial de não deixar o aquecimento ultrapassar a marca de 2 graus.

Para tanto, a Emenda de Kigali, como ficou conhecida, define um cronograma de redução da produção e consumo dos HFCs até um patamar mínimo a ser atingido pelos Estados Partes. No caso do Brasil, o consumo deverá ser congelado em 2024 e iniciada uma redução escalonada a partir de 2029. O objetivo é atingir, em 2045, o consumo máximo de 20% em relação à linha de base.

Ratificado pelos governos de 121 países, o texto completa, neste mês do Meio Ambiente, três anos de tramitação na Câmara dos Deputados. O projeto já foi aprovado por todas as comissões da Câmara dos Deputados, mas há cerca de um ano e meio espera-se que a Presidência da Casa o encaminhe à votação no plenário.

Além da importância climática, a ratificação da emenda tem relevância econômica. É que, diante dos esforços necessários para que países em desenvolvimento consigam cumprir suas metas, o Protocolo prevê a alocação de recursos para apoiá-los na atualização tecnológica das fábricas nacionais de aparelhos de ar condicionado e sistemas de refrigeração.

No caso do Brasil, estima-se que a dotação a fundo perdido seja da ordem de US$ 100 milhões. Esse processo de modernização das fábricas brasileiras terá reflexo na geração de empregos industriais e na melhoria tecnológica dos equipamentos vendidos no país, garantindo o acesso dos brasileiros a equipamentos mais eficientes e, portanto, com menor gasto de energia. Ao mesmo tempo, evitaria que o Brasil possa ser destino de aparelhos obsoletos, com baixa eficiência energética e elevado impacto ambiental.

Melhor ainda se tal processo vier acompanhado de determinações legais em favor justamente desse aumento de eficiência. Nesse caso, mais do que da ratificação da Emenda de Kigali, essa mudança depende do resultado da consulta pública conduzida nos últimos meses pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) para as regras do Programa Brasileiro de Etiquetagem das geladeiras e freezers fabricados no Brasil. Infelizmente a proposta apresentada pelo órgão não permite muito otimismo.

Para se ter uma ideia, se for adotada, em 2025 provavelmente não poderá ser vendido em lugar nenhum do mundo que não seja o Brasil. Além disso, o país poderá levar mais cinco anos para alcançar padrões que já são regra há anos nos países mais desenvolvidos — a um custo para os brasileiros da ordem de R$ 52 bilhões até 2030, segundo cálculos das ONGs CLASP e International Energy Initiative – IEI Brasil para a Rede Kigali.

O número representa a perda que os consumidores terão com a conta de luz pelos próximos dez anos se comprarem refrigeradores ineficientes devido ao atraso na revisão das etiquetas. Para evitar parte significativa dessas perdas, o Inmetro precisa adotar, já a partir de 2022, os critérios do Energy Star de 2014, padrão internacional de consumo eficiente, para a faixa “A” da etiqueta e mantendo a classificação nas faixas de A a E. Numa segunda fase, em 2024 esse padrão seria harmonizado com o da United for Efficiency (U4E, liderado pelas Organização das Nações Unidas), mais rigoroso, mas alinhado às recomendações para países em desenvolvimento e plenamente factível para o mercado brasileiro.

Os consumidores brasileiros merecem aparelhos mais eficientes e modernos. Os cidadãos brasileiros e de todo o mundo merecem essa ação tecnicamente e economicamente viável para deter o pior das mudanças climáticas. Existem recursos para isso. Existe tecnologia para isso. Só é preciso ter vontade. A nossa geladeira e o nosso ar-condicionado podem ajudar a refrescar o planeta.

Este artigo foi escrito por Clara Barufi e Alexandre Mansur. Publicado, originalmente, na coluna Ideias Renováveis, da Exame.

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