COP 15: a conferência que garantiu a participação do setor empresarial e mercado financeiro no estabelecimento das novas metas globais para a conservação da biodiversidade

POR – FRANCINE LEAL*, DIRETO DE MONTREAL-CANADÁ, ESPECIAL PARA A COALIZÃO VERDE (1 PAPO RETO, NEO MONDO E O MUNDO QUE QUEREMOS)

Depois de 4 anos de espera desde a última Conferência das Partes sobre a Diversidade Biológica, reuniões sucessivas em modelo on-line e uma COP “divida em dois”, tanto pelas reuniões preparatórias ao longo dos últimos anos, quanto pela divisão da presidência e espaço físico entre China e Canadá, saímos de Montreal finalmente com o novo “Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework” (Marco Global da Biodiversidade) dando sequência às Metas de Aichi, assinada em Nagoya-Japão em 2010. Mas não foi a divisão de espaço, opiniões e posicionamentos rígidos que impossibilitou o fechamento deste acordo nesta madrugada.

A adoção do novo Marco Global e do pacote que considera metas, objetivos e financiamento mais ambiciosos representa um passo importante para resgatarmos o nosso papel como seres inseridos na natureza, e compreensão de que para nossa sobrevivência precisamos nos colocar como parte dela, e não ela a nosso serviço.

Não temos muito tempo para agir! As metas estão definidas para 2030, mas já estamos atrasados. A eficiência deste acordo será medido pelo nosso progresso rápido e consistente na implementação do que foi acordado.

Também chamadas do acordo “30×30”, as metas consideram objetivos ambiciosos para garantir a conservação e gestão eficaz de pelo menos 30% das terras, águas continentais, zonas costeiras e oceanos do mundo, bem como a restauração de pelo menos 30% dos ecossistemas terrestres e marinhos degradados, respeitando os territórios indígenas e tradicionais na expansão de novas áreas protegidas.

Neste ponto específico, vemos uma oportunidade única de inverter a lógica dos mercados financeiros relacionados à créditos de carbono e os novos “biocréditos”, que tanto foi falado nesta COP. São os povos originários e comunidades tradicionais os maiores responsáveis pela preservação de áreas naturais e conservação de florestas. É a hora de serem eles os beneficiários diretos dos recursos necessários para garantir o cumprimento dessas metas, possibilitando inclusive a permanência deles na floresta e fomento da bioeconomia. Estudos demonstram que eles representam apenas 5% da população mundial, mas são responsáveis pela proteção de pelo menos 80% das áreas ainda conservadas no mundo.

Não é à toa que os povos indígenas são mencionados repetidas vezes no documento final, o que sem dúvida é um grande avanço, conquistada inclusive pelo aumento expressivo da participação das populações indígenas e comunidades tradicionais nesta Conferência e da sociedade civil como um todo.

Mas um dos pontos mais polêmicos nas negociações foi justamente a definição de “quem vai pagar a conta”. Desde a época do período “pré-quito”, quando discutimos os projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL no âmbito da Convenção do Clima, falávamos da responsabilidade comum, porém diferenciada, em outras palavras, quem “chegou para o cafezinho” não vai dividir a conta da mesma foram de quem aproveitou o todo o jantar.

Nesse cenário, o acordo final prevê Meios adequados de implementação, incluindo recursos financeiros, capacitação, cooperação técnica e científica, e acesso e transferência de tecnologia, fechando progressivamente a lacuna de financiamento da biodiversidade de US$ 700 bilhões por ano e alinhando os fluxos financeiros com o GBF – Kunmin-Montreal Global Biodiversity Framework.

A Meta 19 trata da operacionalização deste objetivo mais amplo, em que os compromissários concordam em aumentar substancial e progressivamente o nível de recursos financeiros de todas as fontes, incluindo recursos nacionais, internacionais, públicos e privados, para implementar estratégias nacionais de biodiversidade e planos de ação, mobilizando pelo menos 200 bilhões de dólares por ano. Prevê ainda o aumento total de recursos financeiros internacionais relacionados à biodiversidade de países desenvolvidos, incluindo assistência oficial ao desenvolvimento, e de países que assumiram voluntariamente obrigações de países partes desenvolvidos, para países em desenvolvimento. Coloca-se a necessidade de aumentar significativamente a mobilização de recursos domésticos, seja pela construção e implementação de planos nacionais de financiamento da biodiversidade ou instrumentos similares e incentivando o setor privado a investir na biodiversidade, inclusive por meio de fundos de impacto e outros instrumentos.

O setor privado foi bastante participativo nesta Conferência, não apenas pela presença maciça na COP 15 e nas discussões abertas do Business Forum, mas pela citação direta na definição das metas. Cerca de 1000 representantes do setor privado estiveram presentes e estima-se a presença de 17 mil pessoas, quase o dobro da última COP no Egito.

Outros formatos foram considerados para viabilizar o financiamento, como o estímulo a metodologias inovadoras, como pagamento por serviços ecossistêmicos, títulos verdes, compensações e créditos de biodiversidade, mecanismos de repartição de benefícios, e salvaguardas ambientais e sociais. Esse formato tem relação direta com a Meta 8, que prevê a inter-relação entre biodiversidade e mudanças climáticas, já que os mecanismos de financiamento incentivam também a otimização de co-benefícios e sinergias de financiamento visando a biodiversidade e as crises climáticas.

Ainda na esfera de financiamento, as metas deixam claro que tudo isso só será possível se melhorarmos o papel das ações coletivas, inclusive por povos indígenas e comunidades locais e abordagens não baseadas somente em “mercado”, incluindo gestão comunitária de recursos naturais e cooperação da sociedade civil voltada de forma geral para a conservação da biodiversidade.

Outro ponto muito discutido foi o chamado “mandatório” relacionado também ao “Nature Positive”. A Meta 15 exige a adoção de medidas legais, administrativas ou políticas para garantir que grandes empresas e instituições financeiras monitorem, avaliem e divulguem com transparência seus riscos, dependências e impactos sobre a biodiversidade, inclusive com requisitos relacionados às suas operações e cadeias de valor. Caberá a elas fornecer informações necessárias aos consumidores para promover padrões de consumo mais sustentáveis, informar sobre o cumprimento dos regulamentos e medidas de acesso e repartição de benefícios e reduzir progressivamente os impactos negativos sobre a biodiversidade. O compromisso prevê também o aumento dos seus impactos positivos, reduzindo os riscos relacionados à biodiversidade para empresas e instituições financeiras.

Outro grande ponto de discussão foram as “sequências digitais” ou DSI (digital sequence information), tema transversal à Meta 13 e 17 que trata do acesso facilitado e garantia da repartição de benefícios e sobre biotecnologia. Para quem não acompanha de perto, DSI refere-se à informação genética digitalizada que obtemos da natureza, que é usada frequentemente no âmbito da biotecnologia no setor agro, e para o desenvolvimento de medicamentos e vacinas. A grande questão é a dificuldade de rastreabilidade dessas informações digitais e ao fato de que – se o tema fosse deliberado no âmbito do Protocolo de Nagoya -, as regras para garantir assinatura de PIC e MAT – consentimento prévio e informado e de contratos de repartição de benefícios inviabilizaram ou atrasariam demasiadamente o avanço tecnológico. O desenvolvimento de produtos à base de sequências digitais pressupõe o uso de dezenas de sequências, portanto a solução acordada foi a garantia de um mecanismo multilateral para repartição de benefícios, o que deve ser regulamentado na COP 16, que deve ser sediada na Turquia, no último trimestre de 2024.

Os documentos finais dos acordos estabelecidos podem ser acessados na página da Convenção sobre Diversidade Biológica – CBD.

*Francine Leal é Sócia-Diretora da GSS Carbono e Bioinovação – Foto: Arquivo pessoal

 

Coalizão Verde é a união dos portais de notícias Neo Mondo, O Mundo Que Queremos e 1 Papo Reto, com o objetivo de maximizar os esforços na cobertura de temas ligados à preservação ambiental.

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