Como o mercado pode parar de financiar a degradação

Considerar os benefícios ambientais garante proteção ao patrimônio ambiental e ganho para quem investe

A expressão “Taxonomias Verdes” surgiu no mundo das Finanças ASG há cerca de 6 anos, depois que o Grupo de Estudos de Finanças Verdes do G20 e outras organizações-chave apontaram em alguns relatórios que precisamos delas por duas razões principais: a) para medir fluxos financeiros para a Economia Verde e monitorar o progresso ao longo do tempo; b) para garantir que certas atividades e projetos podem ser considerados “verdes”, ou seja, com saldo ambiental positivo. Esta última função pode viabilizar a expansão de novas tecnologias, que podem ser consideradas muito arriscadas por bancos ou investidores tradicionais, mas das quais precisamos para alcançar uma economia sustentável.

A avaliação da viabilidade técnica dessas tecnologias fornece segurança para que o mercado lhes dê escala, especialmente se, ao mesmo tempo, reguladores financeiros começarem a exigir que as instituições financeiras divulguem o percentual de suas carteiras que está alinhado com as taxonomias verdes e reguladores dos mercados de capitais exigirem que as empresas divulguem o percentual de sua produção ou de suas receitas que está alinhado a elas.

Mesmo antes disso, alguns reguladores financeiros, como o regulador bancário da China (em 2012), já haviam definido, pelo menos de forma genérica (gestão de resíduos, eficiência energética, eficiência hídrica, energias renováveis, restauração de ecossistemas etc), quais atividades consideravam enquadráveis no “crédito verde” e, na China, até mesmo foi constatado, após os primeiros anos, que a taxa de inadimplência é muito mais baixa para elas do que para as operações de crédito tradicionais. Um estudo acadêmico publicado em 2018 analisando 72% do mercado bancário chinês também apurou taxa de inadimplência menor nos bancos cuja carteira tinha proporção maior de crédito verde.

Desde então, a UE decidiu elaborar uma Taxonomia Verde, e nisso foi seguida por diversas outras economias. A estratégia utilizada pela UE foi definir seis objetivos ambientais distintos (mitigação e adaptação às mudanças climáticas, conservação e restauração de ecossistemas, conservação e restauração de cursos d’água, economia circular e prevenção e combate à poluição).

Essa divisão acabou se tornando um problema, pois a abordagem por etapas adotada fez com que os objetivos relacionados ao clima fossem tratados separadamente e não de forma interligada aos demais. O princípio de “não causar danos significativos” (as atividades incluídas na taxonomia para um objetivo não podem prejudicar nenhum dos outros cinco objetivos de forma significativa) e as “salvaguardas sociais” (também incluídas na taxonomia da UE) estão longe de serem suficientes.

O foco inicial no clima significou que não foram consideradas sinergias com outros benefícios ambientais, tais como a redução de resíduos (resultantes da energia do biogás derivada do lixo doméstico) ou a conservação dos ecossistemas (soluções baseadas na natureza são justamente o ideal para se combinar benefícios climáticos e de biodiversidade); uma abordagem de ciclo de vida deve ser adotada para a energia solar, cujos paineis dependem de atividades de mineração e seu destino final é uma questão também delicada; etc.

O que vemos na taxonomia da UE, sobretudo com a inclusão da energia nuclear e gás natural, leva a concluir que o princípio de “não causar danos” não foi levado a sério. Outro exemplo da necessidade de uma abordagem integrada, para além da agenda climática, é a reciclagem de resíduos, que contribui para a prevenção e controle da poluição, mas também utiliza água e energia, de modo que o saldo ambiental final precisa ser apurado no contexto de cada tipo de resíduo, a fim de avaliar se ela deve ser considerada “verde”.

Além disso, ao invés de taxonomias binárias, precisamos de taxonomias que considerem o grau de benefícios ambientais (não é suficiente ser substancial, como exigido na taxonomia da UE, precisamos saber o quanto), e também sua abrangência (pois muitas atividades geram inclusive mais de um benefício), e quão baixos são os riscos e impactos negativos ambientais e sociais inevitáveis. Precisamos de diferentes “tons de verde”, como faz a consultoria norueguesa CICERO para os Green Bonds.

Uma boa maneira de desenvolver taxonomias é começar com atividades que trazem apenas benefícios ambientais, tais como as que proporcionam eficiência hídrica, eficiência energética, eficiência no uso de matéria-prima ou outros insumos, aumento dos níveis de segurança e saúde dos trabalhadores, comunidades afetadas e/ou consumidores, redução da poluição, conservação e restauração de ecossistemas.

Não faz sentido, por exemplo, gastar energia discutindo se o gás natural ou a energia nuclear é “verde” (como ocorreu na UE), quando atividades óbvias, como agricultura regenerativa e tecnologias de detecção precoce de incêndios florestais, ainda não têm um “rótulo verde”. E precisamos que impactos sociais também sejam considerados.

Além disso, é fácil compreender que não resolveremos problemas ambientais e sociais em nenhum lugar do mundo se financiarmos impactos positivos e, ao mesmo tempo, continuarmos financiando danos ambientais e sociais. Infelizmente, o fato de, por exemplo, a geração de energia renovável se expandir não implica que a energia de origem fóssil diminua em números absolutos (de modo que o total de emissões de GEE permanece o mesmo). Todos conhecemos o mito do crescimento econômico eterno (que obviamente é a causa da degradação dos ecossistemas e das mudanças climáticas), que levam a políticas macroeconômicas cujo foco é o crescimento do PIB ao invés da sustentabilidade socioambiental.

É perfeitamente possível que o fornecimento de energia renovável aumente enquanto, ao mesmo tempo, a energia e os combustíveis fósseis permaneçam do mesmo tamanho (se não aumentarem também!) – os subsídios de impostos fósseis ainda não estão sendo eliminados, como demonstram estes dados, e grandes bancos e investidores ainda estão financiando energia e combustíveis fósseis, incluindo novos projetos de infraestrutura. Também não há garantia de que os carros elétricos (cujos combustíveis emitem menos GEE) serão sempre alimentados com energia limpa.

O que é garantido, infelizmente, é que eles usam baterias feitas de lítio, cuja extração tem um enorme custo ambiental e social. E o mesmo pode ser dito sobre a proteção de ecossistemas – podemos investir muito em atividades de restauração, mas se sua degradação (através da poluição ou desmatamento) ainda estiver sendo financiada da mesma forma, não sairemos do lugar.

Desenvolver Taxonomias Verdes é positivo para criar novas oportunidades de negócios, mas, se levamos realmente a sério os objetivos ambientais, precisamos abordar profundamente também o outro lado da equação, que é a identificação de onde estão os impactos indesejáveis.

A solução radical seria proibir certas atividades econômicas – e esse já é o caso de uma parte da poluição e do desmatamento. Entretanto, isso não pode acontecer antes que a “nova economia” esteja “pronta”, com fornecimento suficiente de energia limpa para todos. Deve-se lembrar que em muitos países a universalização da energia ainda não existe, portanto, há uma imensa oportunidade de fazê-lo desde o início, fornecendo as energias mais limpas possíveis para aqueles que agora não têm nenhuma.

Portanto, precisamos também de uma “etiqueta”, como foi feito pela primeira vez por um regulador financeiro (o indonésio) para as atividades que, mesmo que legais, devem ser restringidas e, se possível, descontinuadas – atividades econômicas foram classificadas em “verdes”, “amarelas” e “vermelhas”.

Finalmente, é essencial lembrar que qualquer taxonomia séria deve considerar também a localização das atividades econômicas. Um projeto pode ser “verde” em uma área e “amarelo” ou mesmo “vermelho” em outra, porque afeta negativamente um hotspot de biodiversidade, uma comunidade indígena, uma bacia hidrográfica importante e assim por diante.

Esse relatório do UNEP-WCMC publicado em 2020 ilustra claramente porque é útil considerar (usando uma abordagem integrada, como dito anteriormente) a localização das atividades tanto para evitar emissões de carbono provenientes do desmatamento quanto para preservar a biodiversidade – economiza espaço, tempo e dinheiro, uma vez que existem muitos locais cuja conservação é capaz de trazer benefícios para ambos os objetivos – é preciso explorar essas sinergias.

Além disso, o mercado financeiro deve parar de financiar violações às regras ambientais! Infelizmente, a realidade não poderia estar mais longe disso – um relatório recém publicado pela Finance for Biodiversity explora as ligações entre o mercado financeiro e os crimes ambientais e deixa claro como as diligências do mercado financeiro a este respeito estão muito longe de ser suficientes.

As diligências devem abranger toda a cadeia de valor, por exemplo, inclusive para evitar a lavagem de dinheiro. Um exemplo fácil é a extração de ouro no Brasil: o estudo aqui mencionado ilustra uma quantidade de ouro envolvida em forte suspeita de ilegalidade que é igual à metade da produção de ouro do país no período analisado.

Nada disso é fácil, mas há pontos inequívocos para começar: incluir atividades que trazem múltiplos e relevantes benefícios ambientais e sociais na categoria “verde” (não entendida como ambiental apenas, mas sim como “vá em frente!”) e colocando uma “etiqueta vermelha escura” nas atividades que provavelmente serão proibidas num futuro próximo, devido aos danos incontroversos que causam (impossibilitando sua inclusão em qualquer trajetória de transição).

O mercado precisa de um framework (a ser atualizado conforme o desenvolvimento tecnológico) para que possa avançar na direção exigida por uma sociedade que depende da natureza para satisfazer, ao fim e ao cabo, todas as nossas necessidades. Por isso a SIS lançou esse estudo com recomendações para o Brasil, baseadas nas iniciativas existentes em nível global nesse tema.

Este artigo foi escrito por Luciane Moessa, PhD em Sistema Financeiro e Desenvolvimento Sustentável pela USP e Diretora Executiva e Técnica da SIS (Soluções Inclusivas Sustentáveis). Publicado, originalmente, na coluna Ideias Renováveis, da Exame.

Foto: depositphotos

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