E se o argumento do filme Não Olhe para Cima fosse ligeiramente diferente?
Imaginem se a gente mudasse um tiquinho o roteiro de “Não Olhe Para Cima”. No argumento original da produção do Netflix, Leonardo DiCaprio e Jeniffer Lawrence descobrem um cometa destruidor que irá cair na Terra em exatamente 6 meses e 14 dias. Na nossa versão alternativa, a história seria um pouco diferente. A astrônoma Kate Dibiasky (Lawrence) está vasculhando os céus no telescópio quando descobre um novo cometa. Emocionada, ela mostra para seu mentor, o astrônomo Randall Mindy (DiCaprio). Os dois reunem a equipe do observatório e começam a calcular a rota do cometa. Apavorados, constatam que as projeções indicam que o cometa, do tamanho do Everest, está em rota de colisão com a Terra. O impacto está previsto para ocorrer em aproximadamente 200 anos. Temos dois séculos para evitar a tragédia.
Kate e Randall tentam alertar a imprensa, mas ninguém dá muita atenção para uma catástrofe prevista para acontecer em 200 anos, quando nenhum de nós estará aqui para ver. Outras notícias mais imediatas têm prioridade. Os cientistas tentam alertar as empresas, mas que executivo se importa com alguma coisa num prazo tão longo? Os acionistas querem retorno. Mesmo os grandes fundos de investimento estão preocupados com prazos de no máximo 10 anos. Dois séculos? Quem se importa? Os governantes nem querem saber de problemas a mais. Já têm que se preocupar com o que afeta a próxima eleição. Ou no máximo a reeleição.
Estimuladas por interesses econômicos, começam as campanhas negacionistas. Nas primeiras décadas de aproximação do cometa, argumentaram que o cometa é parte da natureza. Que sempre esteve no mesmo lugar. Que não há evidências que esteja se aproximando. Nos anos seguintes, na medida em que os cientistas penosamente reuniam montanhas de evidências que o cometa se aproximava da Terra, os negacionistas – ou céticos – argumentavam que a aproximação fazia parte de um ciclo natural, com períodos de idas e vindas. Em breve, diziam, o cometa vai começar a se afastar e esses cientistas alarmistas serão desacreditados.
Finalmente, ficou evidente que o cometa estava se aproximando mesmo. Mas aí o discurso era que a aproximação ocorreria tão devagar que não haveria problema algum para nós. Gerações inteiras nasceram e cresceram vendo o cometa chegando. Para elas, aquilo fazia parte da vida. Não conheceram um mundo sem o cometa no céu. O cometa não assustava mais do que uma tempestade de verão.
Quando o cometa já estava tão perto que aparecia no céu do tamanho da Lua, passou a inspirar poetas e artistas. Alguns espertalhões começaram a vender lotes na superfície do cometa. Aquele corpo tão perto da Terra também já alterava os ciclos das marés. Algumas marés altas engoliam calçadas à beira mar, avenidas litorâneas ou mesmo casas de balneário. Os astrônomos continuavam tentando alertar que eram as primeiras consequências da lenta queda do cometa. Mas o mercado imobiliário não se abalava. Apenas construíam muros de contenção mais altos na beira das praias, ou pilastras para elevar as casas acima das ondas. Ter o mar mais perto, valoriza o imóvel, diziam os corretores.
Finalmente, o cometa se aproximou tanto que começou a perturbar a atmosfera da Terra. O sistema de circulação de ar quente e frio foi totalmente alterado pela atração gravitacional do cometa. Ondas de frio e tempestade de neve nunca vistas se abateram sobre algumas cidades. Chuvas torrenciais causaram grandes tragédias. Ninguém mais sabia quando haveria estiagem. Por mais que os cientistas apontassem o cometa se aproximando vagarosamente, continuamente, ameaçadoramente, boa parte da população estava preocupada demais em lutar pela sobrevivência, contra as intempéries, para se importar com o resto. Com tantos problemas aqui na Terra, quem são esses lunáticos querendo falar sobre o que vem do espaço?
Esse é o grande perigo do cometa que enfrentamos agora com as mudanças climáticas. Ele vem devagar demais para despertar pânico ou senso de urgência. Mas ele está caindo do mesmo jeito.
Imagem: Netflix/Divulgação