Precisamos de uma Lava Jato da floresta

O sentimento popular de indignação com a corrupção pode nos ajudar a combater o roubo de terras públicas e os ataques às áreas de conservação na Amazônia

As áreas de conservação da Amazônia prestam um serviço insubstituível para os brasileiros – e o resto do mundo. Elas guardam nosso patrimônio genético. Preservam um estoque de carbono que garante estabilidade para o clima do planeta. E são fonte de prosperidade. Mantêm o ciclo de água que alimenta os rios da região, protegem os mananciais que abastecem hidrelétricas e ajudam a formar as chuvas que irrigam o resto do país. Muitas dessas áreas de conservação são destinadas a atividades econômicas saudáveis, com uso sustentável dos recursos naturais, como exploração de madeira manejada, pesca e extração de outros produtos da floresta. Outras abrigam formas de produção agrícola em harmonia com a floresta. Elas também atraem o turismo. Geram mais renda e emprego, mais bem distribuídos e por mais tempo do que a depredação da mata.

Porém essas áreas preciosas têm sido saqueadas por grandes quadrilhas nos últimos anos. Grupos organizados invadem as áreas públicas destinadas à conservação. Pressionam governos, assembleias estaduais e o Congresso para reduzir ou eliminar essas áreas, premiando os invasores. Trata-se de um processo de apropriação pela força de propriedades públicas – terras estaduais e federais – cobertas por ricas florestas para fins de especulação e para o benefício de poucos. Seu argumento para invadir terra pública é que faltaria terra disponível no país. É difícil dizer que falta terra para a produção no Brasil. A Amazônia brasileira tem uma área maior que a região Sul desmatada e praticamente abandonada. Cerca de um bilhão de árvores foram derrubadas para abrir pastos que mais tarde foram largados.

Uma pesquisa realizada pelo Ibope em junho deste ano mostrou que 91% dos brasileiros acreditam que a natureza não está sendo protegida de forma adequada. Em 2014, a porcentagem era de 82%. A proporção de brasileiros que julga ser papel do cidadão defender as Unidades de Conservação cresceu de 46% em 2014 para 66% em 2018. O governo continua mencionado como o principal responsável por cuidar das UCs, com 72% das menções.

Mas como mobilizar a população brasileira contra o roubo de seu patrimônio natural? Uma pista para está numa nova pesquisa chamada “Eles defendem nosso patrimônio – Como os brasileiros apoiam as Unidades de Conservação na Amazônia”, idealizada pelo Instituto do Homem e do Meio Ambiente (Imazon) com a agência O Mundo Que Queremos, e realizada pelo instituto Ideia Big Data. A pesquisa partiu de grupos focais com cidadãos de diversos perfis, adultos, com formação superior, moradores de São Paulo, alguns mais e outros menos conservadores, nenhum deles engajado em ações ambientais. Nas conversas as pessoas puderam expor como pensam e fornecer insights para futuras campanhas de conscientização ou de mobilização. Eles representam uma amostra do que pensa a população urbana brasileira.

E em relação à conservação na natureza, eles são incrivelmente coerentes. A maioria absoluta vive longe de ambientes naturais. Tem pouca oportunidade de visitar alguma área verde. De vez em quando nas férias ou num fim de semana esporádico. Mas afirmam que a preservação do meio ambiente é importante. Eles não entendem exatamente a conexão entre a preservação dos ecossistemas com a qualidade de vida das pessoas, mas sabem que essa relação existe. De alguma forma, têm certeza que a integridade das áreas naturais garante o clima, as chuvas, a água que abastece as cidades e outros serviços essenciais.

Também reconhecem a importância de cuidar das áreas preservadas. Muitos citam casos de invasões próximas a áreas urbanas. Ocupações irregulares por especulação imobiliária ou necessidade social. Em ambos os casos, acham errado sacrificar a área natural. Em geral, os pesquisados têm uma noção forte que o patrimônio natural é deles. A conservação da natureza está ligada à segurança para a família. “Proteger nosso planeta para os nossos filhos, netos. Nossos animais, nossas florestas”, disse um dos participantes.

Para as pessoas ouvidas, a Amazônia é um território bem distante. Nenhum dos entrevistados jamais tinha pisado lá. Mas eles se preocupam com a saúde ambiental da região. Dizem claramente que são contrários a qualquer redução ou extinção de áreas de conservação. Associam atividades predatórias a grandes empresas e interesses privados de grandes produtores rurais. Eles têm a percepção de que os poderosos destroem a natureza para aumentar seus lucros e que os principais prejudicados são a população.

Recentemente, alguns representantes de parte mais retrógrada do agronegócio tentaram emplacar o discurso de que seria preciso escolher entre conservar e produzir. Como se as florestas não gerassem as chuvas que irrigam o cultivo. Surpreendentemente, nenhum dos cidadãos comuns participantes da pesquisa caiu nessa visão enganosa. Eles são mais inteligentes do que isso. Para eles, o Brasil é grande o bastante para preservar e produzir. Talvez até preservar para produzir.

Os pesquisadores apresentaram aos cidadãos uma frase que resume os argumentos de alguns ruralistas: “Dizem que o ônus da preservação cai todo nas costas do produtor rural que precisa manter parte de sua propriedade como floresta preservada e passar por um processo considerado burocrático para poder produzir ou construir benfeitorias. Por isso existe forte atuação para reduzir unidades de conservação, evitar novas demarcações e simplificar as etapas do licenciamento ambiental.” Era de se esperar que o argumento gerasse polêmica. Mas não. Nenhum dos participantes da pesquisa mostrou simpatia com a afirmação. O argumento não sensibilizou nenhum deles a justificar a redução da conservação. As respostas foram claras dos entrevistados. Algumas aspas: “Se você simplifica as etapas de licenciamento, vai todo mundo querer desmatar”, “A pessoa quando comprou a terra sabia que tinha essa lei. Agora quer mudar?” “Acho certo ter essas etapas de burocracia. Tinha que ser mais”, “Estão querendo arrumar uma desculpa para poder ter mais aberturas na lei”.

Tem mais. E essa passagem pode ser a alavanca de uma campanha eficaz contra os abusos na Amazônia. Os entrevistados sentem que, quando um grupo poderoso se apropria de uma área pública de conservação, é como se algo estivesse sendo tomado deles. Eles associam a apropriação de terra pública com desvio ético. Para eles, é o mesmo que o roubo e a corrupção que gerou horror nos escândalos revelados pela operação Lava Jato. Porque em ambos os casos envolvem perdas do bem público. Eles sentem indignação e repulsa quanto à forma de fazer política por meio de favorecimentos. Rejeitam qualquer ideia de flexibilização de tamanho de áreas para a conservação.

O sentimento de revolta contra a corrupção que tomou a política brasileira na esteira da Lava Jato é o mesmo em relação ao roubo de terra pública, à grilagem e à invasão de unidades de conservação. Predomina uma sensação de injustiça em função da impunidade. “Porque estão pegando um negócio que é dos brasileiros e devem estar molhando a mão de muita gente. É crime em cima de crime”, diz um. “Para mim é assassinato. Não sei a dimensão da Amazônia, mas tirou grande parte que poderia estar dando vida”, afirma outra.

A mensagem da pesquisa parece clara: a população brasileira apoia os ambientalistas. Quem defende o patrimônio natural do Brasil precisa ajustar suas narrativas para aproveitar a onda justiceira na sociedade. Os brasileiros se mostram essencialmente conservacionistas. Eles querem preservar o verde de nossa bandeira. É uma causa em nome do futuro das famílias. Está na hora pegar carona nesse sentimento e pensar em mensagens que apelem para a legalidade. Para o senso de responsabilidade. Para ética. Para o combate à bandidagem na Amazônia. Lembrando que quem depreda uma área pública é criminoso. Quem ocupa floresta pública para especular é invasor de terra. Quem rouba madeira de área de uso sustentável é ladrão. Campanhas que reconheçam esse sentimento terão mais força. Serão as campanhas capazes de nos unir em torno de nossa natureza comum.

Este artigo foi originalmente escrito por Alexandre Mansur e publicado na coluna Ideias Renováveis da revista Exame.

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