Floresta grande, projetos pequenos

Qual infraestrutura realmente ajudaria os 25 milhões de pessoas que vivem na Amazônia?

Quando falamos em infraestrutura na Amazônia, pensamos imediatamente em projetos grandiosos, com custo altíssimo e grande impacto ambiental e humano. Será que que é disso mesmo que a região precisa? A quem esses empreendimentos atendem? Será que eles vão melhorar de alguma forma a vida das comunidades? Se alguém perguntasse, para quem vive lá, de que precisa, qual seria a resposta? Estamos falando de uma região onde vivem, só na parte brasileira, pelo menos 25 milhões de pessoas; e talvez esses empreendimentos sejam muito mais infraestruturas na Amazônia do que a para a Amazônia.

A ferrovias Transoceânica (que ligaria o Brasil ao Peru), Paraense (de Santana do Araguaia a Barcarena) e Ferrogrão (de Sinop no MT a Itaituba no PA) preveem investimentos bilionários e suas obras gerariam imensos transtornos para a população da região, sem deixar quase nada em troca. Pouca gente sabe, mas a população do entorno da Usina Hidrelétrica de Tucuruí só recebeu energia elétrica cerca de 20 anos depois de sua construção. A maior parte dos impostos gerados a partir de Belo Monte não fica no Pará, onde está localizada – a hidrelétrica exporta pelo menos 80% da energia gerada, ou seja, quem vive nos arredores lida com os transtornos, mas é o Sudeste quem fica com o ICMS da energia que sai de lá, já que a arrecadação é feita no destino.

Grande parte das cidades próximas à floresta tem problemas sérios de falta de serviços como saneamento básico, tratamento de lixo, energia e internet. Mesmo com várias cidades no meio do rio, a água é suja e imprópria para o consumo. Além disso, as estradas estão em péssimas condições, o que dificulta a entrega de serviços como saúde e educação e faz com que mesmo trajetos curtos entre cidades vizinhas sejam uma verdadeira saga. E os portos? Eles lá não servem só para atender às comunidades ribeirinhas, indígenas e agricultores, mas também aos interesses das grandes empresas que exploram a região.

Essa reflexão foi o ponto de partida para uma linha de ação do GT Infra, uma coalizão das principais organizações não-governamentais que trabalham com desenvolvimento, infraestrutura e conservação ambiental, principalmente na Amazônia. “Precisamos levantar novas ideias e projetos que sejam alternativas para levar emprego, renda, saúde, educação e, claro, infraestrutura a todos os brasileiros. Ideias sustentáveis de empreendimentos e demais investimentos que levem em conta a urgência em cuidar do nosso patrimônio social e ambiental”, afirma Sérgio Guimarães, secretário-executivo do GT Infra.

O plano é discutir com as organizações projetos de infraestrutura para a Amazônia que ajudem a atender os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Os ODS incluem objetivos como reduzir a pobreza, oferecer água e saneamento, reduzir a desigualdade de gêneros etc.

Caetano Scannavino é coordenador da ONG Projeto Saúde e Alegria – que tem ampla atuação no Pará – e acredita que, para pensar em infraestrutura para a Amazônia, é preciso lembrar que sem o social não se resolve o ambiental. “A gente fala muito de preservar as florestas e essa coisa toda, mas a população de lá também quer água de qualidade, energia elétrica, facilidade de transportes, saneamento básico, internet e tratamento de lixo, como qualquer outra comunidade.” Ele destaca que o desenvolvimento da região está muito atrás do restante do Brasil, seja na cidade ou no campo. O ranking do Trata Brasil, que analisa o saneamento básico, mostra que grande parte dos municípios com maiores déficits nessa área ficam na região Norte.

O tamanho da região e o fato de a população viver espalhada e em áreas de difícil acesso estão entre as raízes dos problemas, pois fazem com que mesmo as infraestruturas básicas tenham alto custo de instalação e manutenção. “O Luz Para Todos, por exemplo, já chegou a 98% da população brasileira, mas boa parte desses 2% restantes fica na Amazônia,” exemplifica Caetano. Por lá existem municípios do tamanho de países – Altamira (PA), por exemplo, é maior que a Inglaterra ou Portugal. “Os custos logísticos para levar itens como vacinas ou merenda escolar para esses municípios são muito mais altos que em qualquer outra região, mas suas prefeituras, que são as responsáveis por essas e outras políticas sociais básicas, não têm uma compensação financeira para que essa conta feche, pois os mecanismos de arrecadação seguem padrões nacionais.”

Poucas vezes se pensou pequeno na Amazônia e, para Pedro Bara, pesquisador do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), esse modelo está errado. “Não é uma questão de escala, mas de diversidade.” Ele afirma que, sem acesso a serviços básicos, a única coisa viável economicamente é engordar boi, atividade que, não por acaso, é uma das que mais cresce na região. Ao contrário do que se prega, o especialista afirma que a Amazônia não tem uma economia local forte. “É uma região que vive de incentivos, como a Zona Franca de Manaus, ou de ilegalidade, com mineração e extração dos recursos naturais.” Além disso, a concentração das pessoas nas capitais é enorme, o que dificulta esse desenvolvimento.

Quando se fala em gerar oportunidade econômica na Amazônia, parece que todo mundo depende de destruir a floresta. Na verdade, grande parte da população é urbana e a parte ambiental-urbana é desastrosa. Tratar também das cidades não necessariamente salva a floresta, mas essa pode ser uma base para também gerar outros tipos de economia na região, que não dependam tanto da extração e do agronegócio. Mas, para atrair pessoas e investimentos para esses novos negócios, essas localidades têm que oferecer uma boa qualidade de vida. O que, definitivamente, não é o caso da região.

Para o coordenador da ONG Saúde e Alegria, há um desconhecimento de quem pensa em políticas públicas para a região Norte. “Independentemente do governo que está lá, a impressão que a gente tem é que os investimentos parecem ter sido projetados por uma pessoa que nunca foi à Amazônia. Fazem casas todas fechadas, num calor tremendo, e os moradores têm que construir uma outra casa de palha ao lado para poder ficar ao meio dia.” São lógicas que deveriam ser repensadas porque o contexto Amazônico simplesmente pede estratégias diferentes.

Paulo Barreto, pesquisador sênior do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), concorda. Para ele, falta pensar em uma infraestrutura que melhore, de fato, a qualidade de vida da população. “Os grandes projetos, em geral, querem apenas infraestrutura para a indústria extrativa, que vai entrar, tirar alguma coisa e levar para processar em algum outro lugar. A prioridade nunca é melhorar a qualidade de vida das pessoas dali.”

Segundo o pesquisador do Imazon, no lugar de construir grandes estradas, é preciso melhorar as estradas vicinais em torno das áreas que já estão desmatadas. Seria mais eficiente, ambientalmente correto e melhor para o escoamento da produtividade. O projeto Barão do Rio Branco, que prevê a conclusão da BR-163 até a fronteira entre Brasil e o Suriname, por exemplo, atravessaria terras indígenas e poderia ser a causa de muitos conflitos. Enquanto isso, há regiões já desmatadas que não conseguem progredir economicamente porque as estradas são ruins. “Basicamente, é preciso investir e melhorar o uso nessas áreas em vez de abrir novas fronteiras.” Estradas melhores favorecem a chegada de serviços, como assistência técnica e educação. “Melhorar a produtividade tem a ver com incorporar conhecimento e isso depende de infraestrutura.”

Paulo Barreto também tem sugestões para os problemas da população rural de lugares distantes, que sofre mais ainda. Alternativas eólicas e placas solares poderiam fazer a eletricidade chegar a esses lugares remotos que, hoje, são abastecidos basicamente por motores a diesel. Uma comunicação via satélite eficiente permitiria a melhoria de dois serviços extremamente importantes a qualquer localidade e dos quais essa população é carente: saúde e educação. “É difícil atrair profissionais para esses lugares, mas hoje já existem bons cursos e serviços de saúde que podem ser feitos remotamente, a partir de novas tecnologias; mas, para isso, essas pessoas precisam de conectividade.” Investimentos em infraestrutura só costumam ser atrativos para o setor privado quando têm alto volume de uso, fator que não está presente nesses lugares mais remotos. É preciso, então, uma participação pública mais forte.

“A gente vem trabalhando em parcerias com prefeituras para que essas políticas cheguem também às áreas mais longínquas, até porque quem mora lá longe é tão cidadão quanto quem mora dentro da cidade”, afirma Caetano Scannavino. Ele diz que garantir serviços básicos nas comunidades reduz também os gastos das grandes cidades, que hoje têm os seus serviços sobrecarregados. Entre os projetos com participação da ONG Saúde e Alegria estão iniciativas para melhorar a questão da água e construir banheiros, diminuindo assim a mortalidade infantil, ainda alta na região.

Scannavino ressalta que, como as coisas demoram mais para chegar por lá, o ideal é que chegue o que existe de mais moderno, com a máxima tecnologia, uma vez que no médio e longo prazo isso reduz custos. “Estamos instalando sistemas de abastecimento de água encanada nas comunidades utilizando energia solar, sem a necessidade de baterias. A maioria dos sistemas já existentes utiliza diesel. Isso é um problema porque, para que o combustível chegue à comunidade, se gasta mais diesel. Além disso, um sistema que se auto abastece é de mais fácil gestão para a própria comunidade. São coisas que podem ser mais bem pensadas.”

É preciso incentivar o desenvolvimento comunitário, com soluções próprias e apoio para as pequenas produções. “Com 100 projetos pequenos, você atende a milhares de pessoas, muito mais que com um grande empreendimento. A Amazônia pede um modelo diferente que não seja esse concentrado nas cidades ou em São Paulo,” afirma Pedro Bara.

As soluções, segundo esses profissionais que lidam com a região, precisam passar por conhecer essas necessidades, o que pode ser feito ouvindo quem vive lá. Esse é o mínimo que a Amazônia deveria receber de volta, já que a partir de lá se gera boa parte da energia que move as indústrias e a agricultura do Sul e Sudeste do país sobrevive. O que não podemos é continuar imaginando a Amazônia como uma reserva para o Brasil rico, num fluxo que só sai e de onde não volta nada.

Este artigo foi originalmente escrito por Angélica Queiroz e Alexandre Mansur e publicado na coluna Ideias Renováveis da revista Exame.

Foto: (Caetano Scannavino/Exame)

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