Como podemos sair da crise do coronavírus preparados para a próxima

Investir em negócios verdes é a saída inteligente para recuperar a economia e ajudar a conter a tragédia já anunciada das mudanças climáticas

O coronavírus parou o mundo muito rapidamente. Apenas alguns loucos questionam que vivemos uma das maiores crises da história humana. Poucas tragédias se comparam na dimensão do trauma, nas perdas humanas e na destruição econômica. No entanto, por pior que seja a pandemia, sabemos que ela vai passar. Provavelmente por uma combinação de vacinas, tratamentos, profilaxia e (infelizmente) imunização involuntária, sairemos da fase aguda da epidemia e começaremos a normalizar a vida em até quatro anos. Já a outra crise global, provocada pelas mudanças climáticas em curso, estará aqui agravando-se e gerando também perdas humanas e econômicas por muitas décadas, provavelmente alguns séculos.

Com isso em vista, o maior grupo de investidores do mundo está se antecipando e divulgando orientações para que usemos nossos recursos de forma inteligente. Podemos canalizar os esforços para a recuperação da crise da covid-19 para começar a reduzir os impactos da crise do clima. A primeira boa notícia é que já temos conhecimento para isso. A segunda é que essa decisão de enfrentar a crise do clima junto com a recessão do coronavírus vai nos entregar um mundo bem melhor para viver. Apostar em soluções para a resiliência climáticas geralmente resulta em melhor qualidade de vida e justiça social para todos.

O CDP é uma organização criada pelos maiores fundos de investimento do mundo para incentivar as empresas de capital aberto a se preparar para as mudanças climáticas. O que eles falam representa a vontade de fundos que movimentam US$ 96 trilhões em ativos. No início de maio, o CDP lançou, em parceria com outras sete instituições, uma carta de recomendações para a recuperação econômica.

Escrita por investidores e direcionada aos governos, a carta ressalta a necessidade de mais investimento para negócios sustentáveis e verdes, acelerando a transição para a economia de baixo carbono. “A iniciativa The Investor Agenda se propõe a acelerar e ampliar ações essenciais para combater as mudanças climáticas e alcançar os objetivos do Acordo de Paris. Com todo cenário da pandemia e consequente recessão econômica, entendemos que é fundamental reforçar a retomada da economia baseada em ações de enfrentamento à crise climática, de maneira sustentável e socialmente inclusiva,” afirma o diretor executivo do CDP Latin America, Lauro Marins.

Projetos de infraestrutura são um caminho frequentemente usado para estimular economias, algo que será muito necessário após a pandemia. É o que explica o Gerente de Finanças Verdes e Relações com Investidores do CDP, Diogo Negrão. “Investir em um futuro pós-Covid está no topo da lista para muitos. E há recurso para isso”, completa. Os governos deveriam garantir que esses investimentos fossem direcionados para projetos de infraestrutura sustentáveis, tecnologicamente avançados e resilientes.

Com isso em mente, The Investor Agenda quer, de forma colaborativa, amplificar as vozes dos investidores e iniciativas que têm o Acordo de Paris como norteador de suas decisões. A ideia é engajar investidores, reguladores e formuladores de políticas para que eles trabalhem juntos alinhando o mercado financeiro à essa necessidade. “Devemos garantir que os pacotes de renovação de longo prazo acelerem nossa economia, tornando-a mais resiliente, inclusiva e carbono zero. Ela deve funcionar em harmonia com a natureza, e não nos levar de volta à produção e consumo que sabemos que são insustentáveis, nos deixando expostos ao risco de aumento de crises futuras”, explica o CEO do CDP, o britânico Paul Simpson.

A carta, que traz uma série de recomendações para uma recuperação sustentável, reforça que os investidores serão peça-chave para ajudar os governos e acelerar a recuperação econômica pós-covid. O documento pede que esse investimento privado seja canalizado para os ativos que levem em conta o risco climático que, a longo prazo, também tem impactos financeiros e econômicos. Outro pedido é que os governos priorizem, em seus planos de recuperação, a sustentabilidade e a equidade. “Os esforços de recuperação econômica são mais bem direcionados para onde a criação de empregos pode ser combinada com sistemas de energia, industrial, construção e de transporte de emissões líquidas zero, juntamente com medidas de resiliência climática e outras infraestruturas sustentáveis que fortalecerão nossas sociedades e manterão os sistemas naturais”, diz o documento.

Tem investidor que já está faz isso há algum tempo. Um deles é Fabio Alperowitch, sócio da Fama Investimentos. Fabio garante que, além de estarem mais alinhados com seus valores pessoais, investimentos que levem em conta as questões ambientais e sociais trazem menos risco e mais retorno, especialmente a longo prazo. “Até muito pouco tempo atrás esse tipo de assunto não era bem visto no mercado financeiro e, por isso, ainda estamos meio que na idade da pedra no que tange à sustentabilidade. Mas precisamos entender que isso não é papo de acadêmico, é realidade e afeta a todos.”

Para ele, o problema climático é centenas de vezes mais destruidor do que a covid-19. Por isso, deixa um recado aos colegas: “saiam só do mundo financeiro, há coisas muito relevantes acontecendo à sua volta, as decisões das empresas impactam o social e o meio ambiente e seremos cobradas por isso, especialmente por investidores estrangeiros. A pergunta básica daqui a alguns anos será: o que você fez em 2020?”

O CEO e fundador da fintech de créditos de carbono Moss.earth, Luis Felipe Adaime, lembra que o Brasil tem potencial reconhecido por organismos internacionais de investimentos. “A gestora global Schroder’s escreveu recentemente que o Brasil é a Arábia Saudita do crédito de carbono. O potencial do Brasil para geração e certificação de créditos de carbono, segundo esse estudo, é enorme: geramos 5 milhões de toneladas ao ano, mas como detemos 40% das florestas tropicais do mundo, temos o potencial de gerar 1,5 bilhão de toneladas ao ano. Se o preço destes créditos no Brasil se equiparar eventualmente ao preço atual europeu, essa venda de créditos geraria US$ 45 bilhões de exportações extras ao Brasil, ou um crescimento extra de 3% ao ano para o país”, explica.

Para ele, a crise do novo coronavírus escancarou o impacto humano no meio ambiente, aumentando o nível de solidariedade e coesão social. “Creio que ela também aumentará a predisposição a investimentos de impacto e esse aumento de demanda pode levar, finalmente, à realização da vocação brasileira como potência ambiental global”, completa.

A posição do CDP reflete uma tendência geral dos investimentos. Gustavo Pinheiro, coordenador do portfólio de Economia de Baixo Carbono do Instituto Clima e Sociedade (ICS), afirma que a transição para um economia de baixo carbono certamente estará entre os impactos de longo prazo da crise. É um setor que já está em crescimento em todo o mundo, apesar de ainda pouco desenvolvido no Brasil. “A transição de muitos negócios para os meios digitais, por exemplo, acabou sendo uma aceleração desse processo, mesmo que pelas razões erradas”. Ele acredita que temos agora uma oportunidade de olhar para isso pelas razões certas, como o alinhamento dos investimentos com valores humanos e em conformidade com acordos internacionais.

Os organismos internacionais que orientarão a recuperação econômica já estão apontando na direção da economia boa para o clima. os governos precisarão de ajuda para se recuperar da crise e quem estiver alinhado a essa demanda pode sair na frente. O Fundo Monetário Internacional (FMI) anunciou que deve emprestar 1 trilhão de dólares aos países atingidos pela pandemia e sua CEO, Kristalina Georgieva, tem sinalizado que quem receber o dinheiro deve utilizar esse recurso para combater as mudanças climáticas.

A diretora do FMI sugeriu que os governos considerem a tributação do carbono para aumentar a receita neste momento de recuperação e, ao mesmo tempo, incentivem as empresas a reduzirem as suas emissões. “Estamos prestes a implantar um enorme e gigantesco estímulo fiscal e podemos fazê-lo de uma maneira que enfrentemos as duas crises ao mesmo tempo”, afirmou Kristalina, em reunião virtual sobre financiamento climático. “Se nosso mundo sair dessa crise mais resistente, precisamos fazer tudo em nosso poder para que essa seja uma recuperação verde”, concluiu.

Este artigo foi originalmente escrito por Angélica Queiroz e Alexandre Mansur e publicado na coluna Ideias Renováveis da revista Exame.

Foto: Painéis solares: as perdas provocadas pelas mudanças climáticas tendem a ser muito maiores que aquelas trazidas pelo coronavírus (Depto. de Transporte do Oregon/Divulgação)

Onde estão os bons negócios para sair da crise do coronavírus?

A recuperação da crise pós-covid vai privilegiar negócios bons contra a crise do clima. As oportunidades para o Brasil já estão mapeadas

Ninguém sabe ao certo como será a recuperação econômica global depois da devastação gerada pela epidemia de coronavírus. Mas está cada vez mais claro que ela terá uma cor: verde. Cada vez mais economistas, instituições respeitadas e países deixam claro que o grande esforço para tirar a economia da crise da covid buscará prevenir a próxima grande crise: a do clima. Essa foi uma recomendação do Fundo Monetário Internacional. Países como Holanda e Alemanha também estão deixando claro que os investimentos para revigorar a economia visarão incentivar produtos e serviços com baixas emissões.

Isso abre uma oportunidade inédita para os empreendedores brasileiros. O Brasil é um celeiro natural para negócios bons para o clima. Isso graças a nossa matriz energética predominantemente limpa (hidrelétricas, álcool, eólicas), à nossa capacidade de criar uma boa economia florestal (que absorve carbono) e nossa capacidade de criar materiais alternativos (como o plástico de cana).

O mapa das oportunidades já está sendo traçado. Entre 2018 e 2019, a Climate Ventures analisou 552 negócios que geram impactos positivos no clima e promovem a economia regenerativa de baixo carbono. Esse trabalho resultou no Mapeamento de Bons Negócios Pelo Clima, um levantamento inédito, o maior já feito na América Latina sobre o assunto. É uma ferramenta relevante para nos ajudar a entender as oportunidades de atuação para o fortalecimento desse nicho no país. O que o estudo revela sobre o potencial do setor? Boas surpresas. Uma delas é desmentir a crença de que ainda não há no país um mercado qualificado para investimento, ou seja, bons negócios para quem quer investir. O mapeamento mostrou, entre outras coisas, que essas empresas estão nascendo e são promissoras.

No Brasil, a maior parte desses negócios está começando: 60% têm menos de cinco anos de fundação. “São novos, mas existem, têm muito potencial e precisam de investimentos”, afirma o diretor da Climate Ventures, Ricardo Gravina. No entanto, muitas dessas empresas sequer se percebem nesse nicho — não se vêem assim e não se vendem assim. Elas trabalham com eficiência e propõem soluções diferentes que possibilitam a transição para economia de baixo carbono, mas nem sabem que isso significa que são bons negócios para o clima. Isso se deve, especialmente, ao fato de ainda não termos um mercado forte na área, fato que, felizmente, também está prestes a mudar.

Partindo desse princípio, de que as empresas verdes existem e precisam de investimento, a pergunta que surge é: onde encontrar os recursos? Gravina explica que grande parte do dinheiro disponível no mercado não é adequado para elas. “Precisa ser um dinheiro um pouco mais paciente, disposto a tomar risco porque, afinal, são negócios novos”, explica. Por isso, de acordo com ele, o momento é de criar novos mecanismos para que o dinheiro chegue a essas empresas. Um exemplo de como isso pode ser feito é o trabalho da própria Climate Ventures, que está criando um mecanismo financeiro, onde os recursos entram na conta como filantropia e são emprestados para os negócios, a juros baixíssimos e correndo um risco maior.

“Não é mais o momento para investir, por exemplo, em uma empresa que trabalha com carvão ou petróleo e está construindo uma usina que fica pronta em 30 anos. Daqui a 30 anos, a tendência é que esse tipo de negócio deixe de existir”, explica Gravina. Muitos investidores ainda não estão vendo isso. Mas outros, como a Black Rock, maior empresa de gestão de ativos do mundo, já começaram a olhar com mais seriedade para a questão. E quem faz isso está correto porque, segundo o diretor da Climate Ventures, o mercado vai começar a precificar em todo o mundo. Isso significa que fica cada vez mais caro investir em negócios que não são bons para o clima e cada vez mais interessante investir em empresas climate friendly. Não só para o planeta, mas para o bolso. O mapeamento da Climate, mostrou, por exemplo, que 69% das empresas têm fins lucrativos. “Já são bons negócios, financeiramente falando”, garante.

A LiaMarinha, uma das finalistas da chamada de negócios da Climate em 2019, é um bom exemplo de negócio verde lucrativo. A ideia da startup é fornecer tecnologias sustentáveis e de baixo custo para melhorar a qualidade das águas, como tratar efluentes, revitalizar e descontaminar ambientes e manejar e reutilizar as chuvas, entre outras alternativas. As soluções misturam, desde paisagismo, até a construção de estações de tratamento e biorremediação, que é a aplicação de microrganismos vivos que aceleram o processo de despoluição de efluentes. Com ideias que podem atender a diversos segmentos, como indústrias, fazendas, empresas, hotéis e condomínios residenciais, a empresa mineira quer ser referência para a gestão sustentável das águas. E o público que ela pode atender só cresce, especialmente porque esta deve passar a ser uma exigência num futuro próximo.

Estamos falando de uma tendência global. Em países como o Canadá as indústrias já que têm que pagar impostos sobre o carbono que emitem. Se no Brasil as grandes empresas começarem a ser cobradas também, elas podem não conseguir competir. E é por isso que elas precisam se antecipar. Vai acontecer, cedo ou tarde. “Essa história de se vamos ou não para o mercado de carbono não faz mais sentido, agora é uma questão de quando”, assegura Gravina. Para ele, quem está pensando investimentos para o futuro, como os fundos, tem que começar a olhar para as emissões de carbono porque isso vai significar menos risco para o negócio, uma vez que a regulação é uma possibilidade cada vez mais certa. “Se hoje já vale à pena, imagina quando a regulação chegar para valer”.

A regulação, inclusive, tem tudo a ver com o surgimento de negócios que geram impacto positivo para o clima. No levantamento feito pela Climate, a área de gestão de resíduos aparece na primeira posição, com 34%, e isso não acontece por acaso. Esse é um mercado que já está mais regulado, o que significa que há mais pressão. “As grandes empresas já estão se preocupando com a gestão de resíduos há algum tempo, com prazo e meta. Ou encontra-se uma solução ou encontra-se uma solução”, explica Gravina. Em contrapartida, com menos pressão do mercado, os negócios que olham para florestas e biodiversidade são um pouco menos desenvolvidos. É uma área onde até existe regulação, mas as cobranças ainda não são tão objetivas.

O ideal, claro, seria contar com a consciência e não com a pressão do mercado, mas sabemos que as estruturas organizacionais não favorecem essa prática. “Acho complicado pensar que a consciência vai fazer um cara da área de compras optar por outro produto, se ele for mais caro. Então, o negócio não pode ser só bom, precisa ser melhor”. Apesar disso, estamos caminhando. Várias organizações já estão começando a se comprometer com zero emissão de carbono, até 2030. Entre elas, algumas grandes empresas, que estão se propondo a encontrar soluções. “E aí começam as políticas. Ou seja, existe uma oportunidade para quem quer empreender no clima e ela é crescente”, afirma Gravina.

Além da gestão de resíduos (34%), as outras áreas com maior incidência de negócios verdes são a Agropecuária (15%), Energia (14%), Uso de solo e florestas (13%), Gestão da água (8%) e Logística e mobilidade (3%). O estudo da Climate ainda revelou que o Sudeste concentra mais de 50% dos negócios verdes, seguido do Norte (15%). O Nordeste aparece com 12% do total, mesma porcentagem verificada no Sul. Por último, está o Centro Oeste, com 7%.

Para saber onde investir, precisamos entender quais são os desafios específicos desses negócios. Por isso, a Climate Ventures também está fazendo e deve lançar ainda este ano, um grande estudo para entender quais são os negócios com maior potencial de diminuir a emissão de carbono. Isso tem a ver com o quanto ele é bom climaticamente, mas também com o quanto ele é escalável e, claro, uma boa ideia de investimento. “Se uma empresa é um ótimo negócio e ele também é bom para o clima, essa é a empresa em que temos que investir”.

O potencial brasileiro é tão grande que o país foi destaque na maior competição global de ideias de negócios verdes, a ClimateLaunchpad, com mais soluções inscritas por dois anos consecutivos — 2018 e 2019. No ano passado, inclusive, três startups foram para a final mundial, em Amsterdã. A chamada de 2020, realizada pela terceira vez em parceria com a Climate Ventures, está com inscrições abertas até o dia 24 de maio e deve contar com a participação de mais de 50 países. Por conta da pandemia, pela primeira vez, toda competição vai ser realizada online e essa é uma oportunidade e tanto para os novos negócios. Os prêmios podem chegar a 10 mil euros, sem contar a oportunidade única de networking e de mostrar lá fora o que temos de melhor nessa área.

Este artigo foi originalmente escrito por Angélica Queiroz e Alexandre Mansur e publicado na coluna Ideias Renováveis da revista Exame.

Foto: (Climate Ventures/Divulgação)

Por que precisamos mais do que nunca exibir os atos de solidariedade

O Dia de Doar Agora celebrado internacionalmente em 5 de maio, é uma oportunidade para resgatar o orgulho das ações de generosidade

Segundo um tradicional ditado judaico, a caridade deve ser anônima. Do contrário é vaidade. O valor desse ditado é evidente. Ele busca reafirmar que a ajuda ao próximo – e ao distante – deve ser feita para atender aos nossos melhores impulsos solidários, e não para alimentar nossa vaidade. O ensinamento precioso desse ditado ajudou a formar poderosos e sábios filantropos anônimos. O ditado atravessou os séculos, incentivando pessoas de várias tradições religiosas ou laicas a manifestar, discretamente, o melhor de si. Por outro lado, vivemos tempos de exceção. Estamos atravessando uma emergência global que exige alta dose de solidariedade. Por isso, é preciso resgatar o orgulho do ato de doação.

No dia 5 de maio de 2020 o mundo celebra o Dia de Doar Agora, movimento global para comemorar as doações já recebidas e mostrar o poder de transformação que as doações têm quando feitas em conjunto. A ideia é celebrar a expansão da generosidade, o engajamento cidadão, a atuação forte no mundo dos negócios e das redes de filantropia. Isso tudo é mais do que oportuno diante do desafio da epidemia de covid-19.

Uma das estratégias para estimular a cultura de doação é tirar o doador da sombra. Ou melhor, convidar o doador a sair da sombra. Eles estão em toda parte. Uma pesquisa realizada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social e pelo Instituto Gallup revelou que metade dos brasileiros doa regularmente de alguma forma. Metade! Por que isso não é mais divulgado ou evidente? Porque o doador brasileiro é tão discreto. “Talvez por uma culpa cristã, uma vergonha de falar sobre o ato”, analisa Marcelo Estraviz, diretor do Instituto Doar. “Pode ter algo a ver com o que aparece em Mateus, na Bíblia: que uma mão não saiba o que a outra fez. Outra explicação provável é vergonha mesmo.”

Para Estraviz, alimentar a cultura da doação passa por alimentar o orgulho do doador. “Ao aparecerem, os doadores passarão a comentar com os amigos para qual organização doam, a quanto tempo fazem isso, o que sabem, o que falta saber. Deixará de ser um assunto tabu, passará a ser conversa de bar. Uns contando aos outros o que conhecem sobre organizações no bairro. Alguns começarão a visitá-las, outros passarão a falar mais a respeito no Facebook”, afirma. Com isso, a cultura de generosidade se retroalimenta.

As empresas podem participar com força desse movimento. Precisamos cuidar para que a sociedade que sustenta nossos negócios e nossas vidas passe da melhor forma possível pelo desafio da pandemia. As empresas, nesse contexto, são poderosas forças criativas, de organização das pessoas para atingir objetivos. Assim como elas se organizam para cumprir tarefas produtivas, criando e entregando serviços e produtos de qualidade, que melhoram nossas vidas, elas também podem usar esse potencial organizativo para promover outros tipos de benefícios.

Em qualquer situação, dar parte do seu lucro ou dos seus recursos para boas causas, para além de fazer do mundo um lugar melhor, gera retornos que vão desde o engajamento dos colaboradores, passando pelas possibilidades de ações de marketing, até o apoio da comunidade e dos stakeholders em geral. Agora mais do que nunca.

Miguel Krigsner, um dos maiores e mais admirados empresários do Brasil, fundador e presidente do Conselho de administração do Grupo Boticário, pioneiro ao criar o modelo de franchising no país, vai além. Para ele, a solidariedade para as empresas não é apenas uma questão de imagem. É de sobrevivência. “As empresas privadas são grandes centralizadoras de interesses. Elas interferem na vida de seus funcionários, consumidores e comunidades. É importante que abracem responsabilidades relacionadas a todos esses atores, de modo a criar ambientes mais sustentáveis do ponto de vista ambiental e também social. Não se trata de uma boa ação. É algo essencial para a sobrevivência dessas companhias. Ao assumir responsabilidades pela vida em seu entorno, elas garantirão a continuidade do próprio negócio. Serão premiadas pelos consumidores, que vão preferir comprar de empresas que fazem o bem”, explica.

A importância da solidariedade também é apontada por Candido Bracher, presidente do Itaú Unibanco, especialmente na crise do novo coronavírus. Ele conta que, em abril, quando comunicou a doação de R$ 1 bilhão para o combate à Covid-19, criou-se o movimento Todos Pela Saúde, que recebeu apoio de colaboradores, clientes e do público em geral. O impacto foi tão grande, segundo ele, que o gesto ajudou a motivar a mídia brasileira a noticiar ações filantrópicas, estimulando sua multiplicação.

“Temos em nós, em nossa sociedade e em nossas instituições, os recursos necessários para responder à altura ao enorme desafio que se apresenta. Estimulando a cultura de doação e nos mobilizando para fortalecer nossos melhores valores, estaremos mais aptos a responder ao julgamento das futuras gerações. Doar não transforma apenas o ambiente à nossa volta. Transforma quem doa, transforma quem recebe”, afirmou.

Para quem quer doar, porém, não há limite mínimo de tamanho. No último dia 28, o Instagram lançou uma nova ferramenta, chamada “Live Donations”, que permite arrecadar doações através das transmissões ao vivo na plataforma. A intenção é direcionar os fundos adquiridos em lives de artistas e produtores de conteúdo para ONGs que podem auxiliar no combate ao novo coronavírus. Ao doar, o usuário consegue acessar adesivos “Eu doei” para serem utilizados nos Stories.

Se você ficar em dúvida para quem doar, há formas de confirmar a credibilidade da instituição recebedora. Uma delas é o Prêmio Melhores ONGs, que lista as organizações não governamentais que se destacam em capacidade de gestão, foco de atuação, governança, sustentabilidade financeira e transparência. Uma boa forma de saber para onde direcionar sua solidariedade. O Melhores ONGs é organizado pelo Instituto Doar, pela agência Mundo Que Queremos e pelo Instituto Filantropia, com apoio técnico da Fundação Getúlio Vargas.

No dia 18 de abril, Lady Gaga puxou uma iniciativa de grandes artistas para chamar atenção para a doação. Eles promoveram o festival One Word Together At Home com a ONG Global Citizen. Artistas brasileiros falam do orgulho de doar em suas lives. Outras iniciativas do tipo estão proliferando. É importante ter orgulho de doar. Assim como existe o consumismo, onde as pessoas exibem o que compram e definem parte de sua identidade pelo que consomem, vamos construir um ethos de orgulho da doação de quem se identifica pela forma como ajuda quem precisa.

Este artigo foi originalmente escrito por Thaísa Pimpão e Alexandre Mansur e publicado na coluna Ideias Renováveis da revista Exame.

Foto: Lady Gaga: a cantora participou da iniciativa da ONG Global Citizen para incentivar a doação diante do coronavírus (YouTube/Reprodução)