A grande solução da logística está errada

Megaprojetos para escoar commodities pela Amazônia têm alto impacto socioambiental e nem atacam os principais gargalos logísticos do país 

Grandes obras de logística vem sendo planejadas, discutidas e criticadas no Brasil. Boa parte delas é prevista para acontecer na Amazônia Legal. A lista de empreendimentos inclui projetos como a ferrovia Transoceânica (que ligaria o Brasil ao Peru), a Ferrovia Paraense (de Santana do Araguaia a Barcarena, de sul a norte do estado) e a Ferrogrão (de Sinop no MT a Itaituba no PA) são apenas alguns dos empreendimentos que, com financiamento da China, mudariam a paisagem da Amazônia.

Megaprojetos como esses pairam há anos nas mesas dos planejadores de infraestrutura no país. As premissas para escolher uma solução de logística em detrimento da outra não ficam claros para a sociedade, que arca com as consequências. Essas obras custam caro. Muitas só se viabilizam com subsídios oficiais, que significam que nós contribuintes acabamos pagando o pato por decisões que não tomamos. São objeto de lobby de grandes empreiteiras. Quando saem do papel, costumam envolver pequenas fortunas de corrupção. Também geram grandes impactos sociais e ambientais sobre as populações locais, que não necessariamente são os maiores beneficiados.

O grande argumento para priorizar essas grandes obras, muitas vezes ignorando alguns sinais de alerta, é que o Brasil precisa resolver seus gargalos de transporte. Afirma-se que essas obras reduziriam os custos de nossa produção. Que tornariam o país mais competitivo. Que contribuiriam decisivamente para reduzir o custo de transporte que pagamos embutido nas coisas que consumimos. Que poderiam diminuir o chamado custo Brasil. Que essas obras também reduziriam as nossas emissões de gases de efeito estufa derivadas da queima de diesel.

Todos esses efeitos positivos são desejáveis. Mas será que essas grandes obras na região Norte para escoar grãos ou minérios realmente são a prioridade para reduzir os custos e as emissões da nossa logística?

Quando pensamos em transporte de carga no país a primeira coisa que vem à mente de muitos são os caminhões enfileirados parados à espera de uma vaga para descarregar no porto de Santos. Isso acontece porque quando falamos de logística pensamos imediatamente na parte exportadora de nossa economia. Mas um levantamento do volume de carga transportado pelas regiões do país revela um outro quadro.

O gráfico abaixo ilustra as movimentações de carga por origem e destino no Brasil em 2015. Ele foi feito pelo Instituto Energia e Meio Ambiente (IEMA) a partir de dados da Empresa de Planejamento e Logística (EPL). A divisão por tipo de modal de transporte revela que 65% das cargas vão de caminhão. O nó está aí, no excesso de concentração da carga na caçamba dos caminhões. Precisamos de alternativas. Mas se a ideia é construir grandes corredores ferroviários para escoar os grãos, vale lembrar que eles representam apenas 4,4% da carga brasileira (em toneladas).

Cerca de 49% da carga do país sai do Sudeste, sendo que 34% roda dentro da própria região e 33% vai para exportação nos portos e aeroportos do Sul e Sudeste. Esses são os caminhões que atravancam as estradas, jogando fumaça negra tóxica, produzindo material particulado que entope os pulmões, queimando diesel e gerando gases do aquecimento global. Toda a carga que sai do celeiro agrícola no Centro-Oeste representa apenas 8% do total. Ou seja, construir obras gigantescas para levar os grãos pela Amazônia certamente beneficiaria bastante algumas traders de commodities. Mas teria efeito bem limitado sobre o transporte de cargas no país. É o que mostra o gráfico do IEMA e da EPL abaixo.

O maior desafio para reduzir custos e impactos ambientais (como emissões de carbono) do transporte de cargas no Brasil é bem menos óbvio do que grãos ou minérios. A maior parte do que está congestionado nas estradas é composto pelo que se chama “carga geral”. Isso inclui um pouco de tudo, como roupas, remédios, aparelhos de TV, material de construção, móveis de mudança, cerveja ou até sorvetes em caçambas refrigeradas. Resolver o nó desse tipo de carga, que vai de qualquer lugar para qualquer canto, é bem complexo. Porque elas fazem percursos diversos. Tem carga de São Paulo para o Rio de Janeiro, carga de Belo Horizonte para Curitiba, ou de Campinas para Santos. A maior concentração está dentro das regiões Sul e Sudeste.

Melhorar isso não pede soluções ambiciosas, com nomes imponentes, subsídios oficiais, facilidades aos empreiteiros, oportunidades para desvios de verba e usos eleitoreiros. Desatar esses nós deve exigir várias pequenas intervenções inteligentes, que combinam redistribuição da produção com obras localizadas. Não é fácil. É certamente menos vistoso e marqueteiro. Mas esse é o desafio real para cortar o custo Brasil e as emissões de carbono da nossa logística.

Este artigo foi publicado originalmente na coluna Ideias Renováveis da revista Exame.

Vamos imitar a África do Sul?

 

Nos anos 1990, o país fez como os EUA: passou a encarar a conservação da natureza como uma atividade produtiva, fonte de renda e empregos de qualidade

O Brasil é o maior produtor mundial de açúcar e de café, o segundo maior de soja, o terceiro maior de minério de ferro. O que pouca gente percebe é que o Brasil também é uma potência em outro produto ainda não tão bem explorado sob o ponto de vista econômico, para geração de emprego e de negócios locais. Nosso país é de longe o maior produtor de natureza do mundo.

Depois de décadas acompanhando projetos de conservação em várias partes do mundo, o biólogo espanhol Ignacio Jiménez Pérez fez, mais uma vez, uma reflexão sobre um dos maiores desafios de quem luta pela conservação da natureza: como mudar a forma como a natureza é contabilizada na nossa visão pragmática do mundo. Ou seja: como tirar a natureza da linha de custo e passar para a de investimento. Ou como fazer o grande patrimônio natural de um país sair da coluna de ativos imobilizados para a de meios de produção.

Ignacio é um dos criadores de uma expressão que começa a ser empregada para designar uma atividade econômica importante: a produção de natureza. No passado, as grandes áreas naturais – dominadas pela vida selvagem – eram predominantes na superfície do planeta. Na medida que a civilização humana foi ocupando e alterando as paisagens dos continentes, as áreas naturais foram encolhendo e hoje ocupam fragmentos cada vez menores do planeta. Cada vez menores e mais valorizados.

As grandes áreas naturais não ocorrem mais espontaneamente. Elas são fruto de trabalho de reconstituição e manutenção. É preciso limpar os rios, repovoar as florestas, demarcar os limites, zelar contra os invasores, evitar o fogo, administrar os visitantes e mapear os recursos presentes na região. Tudo isso, diz Ignacio, é um tipo de produção. Atrai investimentos, gera emprego, traz retorno financeiro.

O conceito de produção de natureza ocorreu a Ignacio nos anos 1990 quando estava trabalhando para o casal americano Doug e Kristine Tompkins na criação de grandes áreas de conservação na Argentina. Doug foi o fundador das empresas The North Face e Esprit, duas gigantes globais de roupas esportivas. Ele casou com Kris, CEO de outra gigante da moda esportiva, a Patagonia. Apaixonados por natureza, os dois criaram um fundo para comprar terras na Patagônia do Chile e da Argentina e doar para a criação de parques nacionais. O desafio de Ignacio era articular a criação das áreas naturais com os interesses das comunidades locais, incluindo governadores, prefeitos, comerciantes, fazendeiros e camponeses.

“Foi surpreendente para mim que a ideia de doar um grande parque nacional para a sociedade fosse recebida com resistência”, conta Ignacio. “Isso nos obrigou a buscar uma nova forma de comunicação com a sociedade. Passamos a explicar para que serve uma área natural protegida. Um ponto importante é que não estávamos propondo um jeito de conciliar a conservação com a produção. Nada disso. Nossa proposta era uma nova forma de produção, onde os ecossistemas naturais restaurados servem como base para o desenvolvimento local, principalmente com atividades de turismo.”

Em 2016, Ignacio foi estudar a experiência dos países do Sul da África. Embora tenha menos áreas naturais do que o Brasil, a África do Sul ganha mais dinheiro com turismo de natureza do que nós. Isso foi fruto de investimento realizado nos anos 1990, na onda da redemocratização. A África do Sul recuperou reservas naturais e criou novos parques nacionais na região de Maputaland, na fronteira com Moçambique, onde as montanhas encontram planícies na costa do Oceano Índico, com toda a incrível megafauna africana, como girafas, rinocerontes, guepardos e leões. No parque da zona úmida de iSimangaliso, o trabalho incluiu desde a construção de pousadas e estradas para turistas até a reintrodução de animais nativos. O número de estabelecimentos turísticos aumentou 60% nos últimos anos. Hoje, são cerca de 7 mil empregos permanentes e 3 mil temporários ligados ao turismo do parque.

Hoje a grande potência mundial do turismo ecológico são os Estados Unidos. Os americanos inventaram os parques nacionais em 1872 com a criação do Parque Nacional de Yellowstone e em 1890 criaram os parques Sequoia e Yosemite. O país promoveu a cultura de visitação de carro como um programa de família dos parques nos anos 1940 a 1950. Assim, as instituições da família, do automóvel e dos parques nacionais se tornaram sagradas na cultura americana. Só em 2017, a visitação aos parques americanos rendeu US$ 887 bilhões, com a manutenção de 7,6 milhões de empregos. Os parques americanos receberam 300 milhões de pessoas naquele ano. Compare isso com os 10 milhões de visitantes dos parques brasileiros no mesmo ano e imagine quantos empregos e renda a produção de natureza pode gerar no Brasil.

As ideias completas de Ignacio estão no livro “Produção de Natureza”, que acabou de ganhar uma versão em português editada pela Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), ONG que trabalha com a recuperação e o desenvolvimento econômico de grandes áreas de Mata Atlântica no Paraná.

Este artigo foi publicado originalmente na coluna Ideias Renováveis da revista Exame.